O Divino Bashô

Há mais de três séculos – exatamente entre 1644 e 1694 – vivia no Japão o grande poeta Bashô, considerado por muitos o mais admirável representante da poesia no seu país, tanto pela perfeição de seus poemas como pela pureza de sua vida. Chamam-no “o divino Bashô”, resumindo nessa expressão sua glória de homem e de artista. Tendo abandonado suas atividades de muito jovem funcionário, tornou-se monge budista, levando existência errante. Mais tarde, teria passado a habitar uma cabana, à sombra de uma bananeira, de onde lhe veio o nome de Bashô, que é pseudônimo literário. Embora tendo sido também fino prosador, Bashô é mais conhecido no Ocidente pelos seus breves poemas de dezessete sílabas que, no Japão, se chamam hái-kái ou kái-ku, tipo de composição a que ele e os de sua escola imprimiram brilho e dignidade excepcionais.

O hái-kái tem sido tentado por muitos poetas ocidentais, seduzidos pela sua extrema concisão de forma. Mas, em japonês, o hái-kái não é apenas um quadro breve, um desenho extremamente sucinto e, na aparência, fácil, representando uma situação ou um estado de espírito. Os elementos que nele se dispõem e são diretamente perceptíveis pelos sentidos evocam, para os japoneses, sugestões que o Ocidente em geral não pode captar, por aludirem a circunstâncias, pessoas, acontecimentos inerentes ao Japão e ao seu povo. Às vezes, a poesia decorre de jogos de palavras intraduzíveis em outros idiomas. De modo que, quase sempre, o que o leitor não iniciado percebe, num desses poemas, nada tem a ver com o que ele verdadeiramente exprime. Um dos mais conhecidos hái-kai de Bashô é o que diz:

“Velho tanque.

Uma rã mergulha.

Barulho da água.”

Essa pequena imagem, que nos deleita pelo contraste do silêncio do velho tanque com o súbito salto da rã e o som da água, tem, na análise dos especialistas, um significado mais profundo: ela representaria o choque do momentâneo com o permanente, choque de que resulta a “percepção da verdade”. Assim, o hái-kái, nas mãos de um artista da qualidade de Bashô, apresenta dimensões que mal se poderiam adivinhar nas suas dezessete sílabas. É um engano tomá-lo apenas pelo aspecto superficial: precisa-se penetrar na intimidade de sua significação. Há outro hái-kái de Bashô que se tornou famoso no Ocidente. E nesse, embora, pelo lado plástico, se nos ofereça uma inesquecível imagem, o conteúdo moral se torna transparente de modo que o pequeno poema vale duplamente, pela forma e pelo sentido. Na verdade, ele fora composto por Kikaku, um dos discípulos favoritos de Bashô. E dizia:

“Uma libélula rubra.

Tirai-lhe as asas:

Uma pimenta.

“Bashô, diante da imagem cruel, corrigiu o poema de seu discípulo, com uma simples modificação dos termos:

“Uma pimenta.

Colocai-lhe asas:

uma libélula rubra.”

Este pequeno exemplo de compaixão, conservado num breve poema japonês de trezentos anos, emociona e confunde estes nossos grandiosos tempos bárbaros. Mas sua luz não se apaga, e até se vê melhor – porque vastas e assustadoras são as trevas dos nossos dias.

Crônica retirada do livro de Cecília Meireles, “Escolha o seu sonho”, Distribuidora Record.

 

1 COMMENTS :

  1. By Marcus A. Capóssoli on

    A crônica em Cecília Meireles não se restringe aos limites do cotidiano, daquilo a que apetece ao paladar mundano.Belo exemplo é este texto que está em “Escolha o seu Sonho”.Numa primeira visada traz a síntese necessária para se entender o hái-kái, sua história, seu significado e seu mais brilhante artesão, Matsuo Bashô.Mas a surpresa está na joia rara que se apresenta linha a linha, a espiritualidade, a compaixão – a semente que gera os Budas e que está presente no poema de Bashô. Cecília,na sua singela humildade, faz brilhar o hái-kái,utilizando o seu(dela) texto para oferecer a nós, leitores, o significado profundo do texto de Bashõ, sendo assim Cecília ,também,compaixão.

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