Adorável Mestre

Discreto, reservado, mas também terno e amoroso, ele inventava com a filha as brincadeiras mais extravagantes, e, assim, sem querer nada, foi ensinando a ela os segredos da arte que ele dominava como poucos: escreverDrummond

Maria Julieta Drummond de Andrade

A imprensa costuma pedir-me depoimentos sobre meu pai e acho que, de certa maneira, já disse sobre ele tudo o que poderia. Tratando-se de pessoa tímida, que não gosta de aparecer, sai e recebe pouco, evita colóquios literários e foge de fotografia e repórteres indiscretos. Todos querem saber como é ele na intimidade dos outros homens. Conheço bem e aceito essa maneira reservada de ser, que me agrada. Por isso, não me sinto de todo à vontade para repetir publicamente o que mais de uma vez contei pelos jornais, pelo rádio e pela televisão.
É possível que muita gente pense que ser filha única de um poeta conhecido seja fortuna, deliciosa ou extremamente difícil. Quanto a mim, sempre achei natural ter o pai que me tocou e com quem me identifico, sob todos os aspectos, humana e intelectualmente. De resto, nunca me vi sozinha por não ter irmãos, pois papai sempre teve a astúcia de criar, pala fazer-me companhia, uma irmã que era a minha cara, só que pretinha e encapotada, de nome Catarina. Depois havia as diversões familiares, que recordo com alegria e que, para surpresa minha, alguns julgavam estranhas.
Saíamos, por exemplo, aos domingos, rumo a destinos vários: entrávamos no cemitério para, em convívio singelo com a morte, ler as inscrições dos túmulos e carneiros e imaginar como fora a vida dos que lá repousavam; percorríamos as favelas de Copacabana, quando essa aventura, no Rio sereno de antes, ainda era permitida; ou íamos ao circo. Cambalhotas, miséria, tristeza – tudo se equivalia naquela visão despreconceituosa do mundo.
Papai cultivava (e ainda cultiva) um gênero de humor negro sem crueldade, que lembra Chaplin. Às vezes fingíamos ser mudos, surdos, cegos, ou tolos e caminhávamos horas a fio pela casa, em silêncio, executando gestos rudes. Se a brincadeira se prolongava, eu começava a temer que ela se tornasse irreversível e implorava a meu pai a volta a realidade.
A maioria dos nossos jogos girava em torno das palavras, das quais aprendi cedo a extrair ressonâncias fonéticas e potencialidades semânticas, que beiravam o delírio. Assim, faziam parte do nosso léxico diário termos de botânica e zoologia, complicadíssimos e instigantes, a que atribuíamos significações novas, e outros que inventávamos, deixando galopar a fantasia. Foi assim que “otimamenterriguantemebonte” passou a corresponder, para nós, ao suprassumo da felicidade. No terreno verbal, a liberdade era absoluta: ocupávamos tardes inteiras de chuva armando palavras engraçadas, que depois utilizávamos nos jogos de força e de “lá vai uma barquinha”.
Os primeiros conselhos literários, recebi-os, sem perceber, de meu pai, que também não tinha a menor intenção de ser catedrático em nada. Muito pequena, certo dia comecei a cantar, distraída:
Dei rosa, dei rosa,
Dei cravo, dei cravo,
Pra que que eu fui dar
A rosa mais linda
Do meu coração?
Meu pai ouviu e gostou. Ao saber que eu mesma fizera a pequena estrofe, explicou-me que eu acabara de compor um poema. Fiquei confusa e deslumbrada, e, a partir daí, pude identificar o fenômeno poético, onde quer que se encontrasse.
Vendo-me labutar nas primeiras composições escolares, mostrou-me ele, que o mais importante era descrever a cena contida nos cromos coloridos que eu colava no caderno: a casa de campo, com as vacas e galinhas; a sala de aula, com meninos e meninas sentados diante das carteiras. Compreendi que a objetividade é essencial, na página escrita.
Outra vez, já no curso de admissão ao ginásio, anotei que eu me deitara “enroladinha como uma bola”, mas a professora julgou por bem substituir a comparação pela seguinte: “enrijecida como um feixe de varas”. Concluí que escrever corretamente era escrever difícil. Fazendo-me ver depois que minha solução era melhor do que a da professora, papai me revelou, quase sem querer, que a simplicidade e superior ao esforço presunçoso.
Já mocinha, tentando burilar um conto, embatuquei de repente num qualificativo para estrela. Ao meu lado, meu pai observou que era inútil pretender acrescentar novos atributos aos inúmeros que essa palavra, tão sugestiva, contém, pois a estrela já é, em si, longínqua, de prata, de ouro, enigmática, bela, comovedora, tudo. Nunca mais me esqueci de que é o substantivo que conta. Em outras circunstâncias, e sem entrar em contradição, ele me foi apontando como o verdadeiro escritor é o que sabe usar, na hora certa, adjetivos enriquecedores.
Devo minha formação literária às histórias que meu pai lia em voz alta para mim. Na infância e na adolescência, eu deitava num sofá, onde às vezes adormecia. Começamos com o Coração, de Edmundo de Amicis, passamos às estripulias de Monteiro Lobato, ao Tesouro da juventude, aos melhores contos universais. Guiada por ele, cheguei a Machado de Assis, Flaubert e Stendhal. Mestres da contenção, no que se refere à linguagem e ao mistério dos homens. E viciei-me na frequentação de dicionários. O melhor conselho paterno, neste terreno: escrever e cortar palavras.
São essas algumas das lembranças mais nítidas que conservo de minha vida de menina e moça, junto com papai. O resto são o amor e o respeito mútuo que sempre nos uniram e que se afirmaram através do tempo. Isso, porém, só a poesia é capaz de transmitir.


Maria Julieta Drummond de Andrade é escritora, autora, entre outros livros, de Um buquê de alcachofras (Ed. José Olympio, Rio de Janeiro, 1980). Revista LEIA – junho de 1985.

 

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