Cotidiano

O pedreiro Mirus ontem não voltou para casa. Não chegou mal-humorado do jeito de sempre chegar. Não gritou com a esposa, nem ralhou com os filhos – e eles agora vão sentir falta disso. Ontem não voltou. Não comeu faminto como comia a comida de todo dia, no sofá da sala, diante da televisão. Não comentou as notícias do jornal, não achou engraçada a novela, também não foi dormir cedo para acordar cedo. Simplesmente não voltou – nem mesmo para o velório.

A manhã fria, o céu nublado, chovia quando Mirus saiu de casa, antes das cinco, misturando-se a romaria de boias-frias que, diariamente, parte do último subúrbio em direção à metrópole, na procissão paro o trabalho, para o sustento da vida, para o encontro com a morte. É a dele, tua e minha, sina: do pão nosso que o diabo amassou de cada dia.

A roupa de cowboy, velha, “de guerra”, não o distinguia na multidão. Nem o andar apressado de quem se atrasou, a barba por fazer. Mas sim o jeito cabisbaixo, a cara triste, de quem anda pensando na vida e falando sozinho. A chuva miúda molhava seus olhos míopes molhados de mágoa. Seu olhar flutuante seguia o pensamento até o caçula, magro menino de pernas, braços e dedos finos, doente, sem escola; a esposa que esconde dores na coluna, de passar horas e horas, no tanque, a lavar roupa para fora; a prestação da casa, a luz, o gás, o pão, o leite; os problemas, os problemas, que tumultuavam sua cabeça, onde quer que ele estivesse, onde quer que ele estivesse. E um engulho na garganta, quente, acre, subindo, subindo. Uma vontade de gritar – CHEGA! – para que todos ouvissem.

E o trem atrasou e parou no sinal e parou na estação, no cruzamento e no tempo.

Às sete horas Mirus chegou na construção onde trabalha. A chuva havia passado. Trocou a roupa e começou no batente. Trabalhando esquecia os problemas. Ainda pela manhã recebeu a má notícia. Soube que a financiadora abrira falência e a obra iria parar na semana seguinte. “Meu Deus – rondou-lhe a cabeça o espectro do desemprego – vão ser demitidos uma centena de operários”. E o serviço não rendeu. Foi ruim, duro e pesado. Trabalhou nove longas horas como de costume – quase só parou para engolir a comida da marmita. Depois fez um cerão para o extra da passagem. No fim da tarde, fatigado, regressou sem ânimo. Ainda passou os olhos pelo esqueleto do edifício que ajudava a construir. Sentiu medo, muito, e teve o pressentimento que olhava a construção pela última vez.

À noite os trens partem superlotados em direção ao subúrbio. Apressado e doido para chegar em casa, Mirus arrumou-se no único lugar onde coube (ou quase): na fresta da porta. Com o corpo fora e os braços dentro, veio na porta, equilibrando a vida nos dedos, ignorando o perigo. Preferiu viajar assim a ser amassado ali dentro, como ocorrera na ida. E, durante a viagem, enquanto o trem chiava sobre os dormentes dos trilhos, Mirus vinha pensando na vida. Seus olhos se encheram d’água (os trilhos passando), sua cabeça (passando), os problemas (passando, passando), onde quer que ele estivesse. Os trilhos formando fios de linhas, e linhas e linhas e linhas sobre as quais o trem sacudia, como se quisesse expulsá-lo de onde se segurava. Pensou em acabar de uma vez por todas com aquilo que o atormentava (os trilhos passando) há anos. Lembrou da mulher e dos quatro filhos (passando, passando). Hesitou. Súbito um solavanco. E não forçou um único músculo.

Num estranho balé seu corpo ainda rodopiou no ar. E Mirus passou. E Mirus ficou. E o trem atrasou e parou no sinal e parou na estação, no cruzamento e no tempo.

Pela manhã os trens partem superlotados em direção à metrópole. Num dos vagões, em pé, junto a uma das portas, Mirus observa os trilhos passando, passando, e fica pensando na vida.

 

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